quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Destilaria do Ódio#2: a ideia generalizada de que ser agente de viagens é um grande regabofe

No outro dia uma amiga formada em clássicas via ensino perguntou-me se eu achava que ela, como não consegue colocação a dar aulas, poderia trabalhar como agente de viagens. Digerida a surpresa e depois de perceber que ela estava MESMO a falar a sério respondi: "Espero que não...". E respondi assim porque é uma amiga MESMO amiga e porque a minha mãezinha ensinou-me a ser bem educada, porque o que me apetecia responder mesmo era: "Ó minha grande parvalhona, achas que eu por saber dizer Et pluribus unum e Musca parva est posso ser professora de Latim?".
 
É uma coisa que me tira do sério porque andei 4 anos da minha vida a estudar para isto e mesmo assim não sabia (quase) nada quando comecei a trabalhar. Fiz um estágio DE BORLA durante 3 meses (um verão inteiro, portanto) e mesmo assim só comecei a ficar com umas noções do que era ser agente de viagens. E agora que trabalho em agências à mais de 10 anos continuo com a certeza de que não sei tudo e todos os dias aprendo coisas novas que só a trabalhar no ramo se aprendem.
 
Ó pessoas que pensam que ser agente de viagens é um grande regabofe e que nos fartamos de viajar e que basta ter andado de avião duas vezes para perceber tudo o que se refere a viagens e reservas e afins, eu explico-vos o que é ser agente de viagens... temos os mesmos dias de férias que os outros e ordenados que... como dizer... nem por isso. Portanto se viajarmos uma vez por ano já vamos cheios de sorte. Temos acesso às ofertas primeiro que os outros, temos sim senhoras, e tentamos aproveitar isso quando queremos viajar. Mas e então? Quem trabalha numa frutaria compra fruta podre para levar para casa, queres ver?! De vez em quando (cada vez mais de vez em quando, infelizmente) lá nos convidam para fazer uma viagem de familiarização, vulgo Fam Trip. Sim, é FAM de familiarização com o destino. Não é Fun Trip, como já ouvi dizer por aí, com ar de quem sabia muito bem do que é que estava a falar. Estas viagens não são férias, consistem em ir conhecer outras paragens, sim senhor, muito bem. Mas vamos com colegas de trabalho, pessoas que muitas vezes nem sequer conhecemos e com as quais nunca na nossa vida iriamos querer ir de férias para lado algum. Depois andamos ao sabor do que programaram para nós, cumprimos horários, visitamos hotéis até já não sabermos dentro de que hotel é que estamos e mostram-nos apenas aquilo que nos querem mostrar. Para chegarmos cá e dizermos que é tudo muito bonito. Quando nem sempre é assim. Chegamos ao fim do dia a querer dormir e partilhamos o quarto com desconhecidos que podem ser uns bacanos ou podem cheirar mal dos pés e ressonar a noite toda. Uma maravilha de "férias", portanto.
 
Lamento informar, mas vender viagens implica passar pelo menos 8 horas por dia fechados numa loja (se tiverem sorte com montra para a rua, porque há delas dentro de shoppings onde nem sequer sabemos se é dia ou noite) a atender clientes, atender telefones e responder a e-mails, muitas vezes tudo ao mesmo tempo. Até os olhos arderem de tanto olhar para o computador, até o pulso doer. Os clientes, que têm sempre razão, pedem-nos voos que não existem, com ligações impossíveis, a preços impraticáveis porque juram que a prima já fez a viagem assim e a amiga também diz que dá e eles viram na net que era muito barato. Vender viagens implica fazer orçamentos que demoram várias horas a construir, que implicam telefonar para vários sítios, às vezes para o estrangeiro (imaginem só...), falar várias línguas, pesquisar as diferentes opções para ver quem tem o melhor e ao melhor preço; para depois os clientes nem sequer perderem tempo a enviar um e-mail de resposta (totalmente grátis) só para agradecer o trabalho e avisar que afinal já não vão viajar ou já marcaram por outro lado. E os amigos são os piores, pela experiência que tenho. Vender viagens implica fazer reservas que depois não dão em nada, avisar que pode ter custos se cancelar depois e levar uma grande reprimenda quando isso acontece. Implica marcar a mesma viagem 4 vezes, mudar datas, mudar nomes, mudar horários, mudar lugares no avião, porque afinal o Sr. Engenheiro de Tal mudou a hora da reunião e o Dr. Não-sei-das-quantas já não vai ao congresso que tinha tanto interesse em ir à duas horas atrás.
 
O agente de viagens é a pessoa que tem OBRIGAÇÃO de conhecer todos os destinos do mundo, saber os preços todos de cor e adivinhar se há disponibilidade ou não. É a pessoa que tem de saber as regras todas das tarifas todas das companhias aéreas todas. É a pessoa que tem de saber para que países é preciso visto, passaporte, bilhete de identidade, vacinas, cartão de saúde, protector solar, contacto de emergência, repelente de insectos, you name it. É a pessoa que tem de adivinhar se vai estar calor, se vai estar frio, se vai chover, se vai haver furacões, greves ou cataclismos e revoluções. É a pessoa que recebe a chamada ao Domingo de manhã porque o cliente está no hotel no outro lado do mundo e tem frio mas ainda ninguém lhe veio colocar uma manta extra na cama (true story). Para além disso tem de conhecer todos os hotéis e saber exactamente se estão bem localizados, se têm internet grátis e se servem refeições vegetarianas. Se o recepcionista do hotel está de mau humor ou simplesmente é mal educado a culpa, obviamente, é do agente de viagens. Se o hotel foi reservado no próprio dia e o cliente chegou lá primeiro do que a informação da reserva então a culpa é, claramente, do agente de viagens que esteve a dormir e não reservou aquilo que garantiu ao cliente (passou recibo e voucher a comprovar) que estava confirmado.
 
Já nem vou entrar por questões mais técnicas, para não vos aborrecer (MAIS), que o texto já vai longo e há pessoas que já querem ir dormir. Nem vou falar dos programas esquisitíssimos com códigos que não lembram a ninguém com os quais nós lidamos todos os dias até ficarmos loucos e vermos nas matrículas dos carros, quando andamos na rua, nomes de cidades, países e companhias aéreas... já nem vou entrar no pormenor da quantidade de vezes que acordamos sobressaltados porque estávamos a ter um pesadelo em que o cliente chegou à Conchichina e o receptivo não apareceu para fazer o acolhimento... não isso só acontece a alguns, que realmente se preocupam com o que fazem. Mas há outro ponto que quero focar e que é o mais importante, quanto a mim. Nós vendemos um serviço, somos acessores de viagens, oferecemos por um preço relativamente barato todos os nossos conhecimentos e know-how de anos a fazer o que fazemos melhor e as pesquisas e informações que vamos buscar para vos fornecer, mesmo quando nunca ouvimos falar no destino que vocês procuram. Temos uma loja aberta, damos a cara, passamos factura, pagamos licensas, vamos a formações, absorvemos tudo de todos os lados para que a vossa viagem de sonho não se transforme num grande pesadelo. E ainda assim, toda a gente desconfia que nós só estamos ali para enganar o cliente e vender gato por lebre.
 
Íde lá marcar na net e depois se correr mal telefonem para aqui, se querem ver eu a esquecer-me da educação que a minha mãezinha me deu. Íde e até sempre.

2 comentários:

  1. Bom discurso! Podias ir fazer uma palestra numa escola de Turismo aos alunos de Turismo!!! ;-)

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  2. Já fiz isso. Acho que eles ficaram muito assustados e foram tratar de mudar de curso. :)

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